nao e coragem e privilegio

Não é coragem, é privilégio: romantizar risco ignora desigualdades e é perigoso

O discurso do “vai com tudo”, “larga tudo e empreende”, “arrisca sem medo” está por toda parte, e eu mesma já usei.

Em podcasts, eventos, redes sociais, vemos histórias celebradas como atos heroicos: o executivo que largou o cargo para seguir um sonho, a jovem que pediu demissão para abrir um negócio do zero, a profissional que trocou estabilidade por liberdade. São trajetórias reais, muitas vezes inspiradoras, mas também incompletas. Porque o que se apresenta como coragem, frequentemente, é também privilégio.

Empreender envolve risco, e o risco nunca é igual para todo mundo. Abrir mão de um salário fixo, de benefícios, de previsibilidade, de estrutura, tudo isso pesa de formas muito diferentes dependendo da classe social, do gênero, da cor, da rede de apoio, do patrimônio acumulado ou mesmo da cidade onde se vive. Para algumas pessoas, errar é um recomeço. Para outras, é um abismo e o fim.

Quando romantizamos o risco sem considerar contexto, naturalizamos uma visão elitizada do empreendedorismo. Ignoramos que muitos empreendem não por vocação, mas por falta de opção. Que alguns têm família para segurar as pontas, outros não têm nem crédito no banco. Que há quem trabalhe 12 horas e ainda cuide da casa, dos filhos, dos boletos, sem espaço algum para “arriscar”.

O problema não está em contar histórias de virada. Elas têm valor e podem, sim, inspirar. O problema é tratá-las como regra universal. Como se coragem fosse só uma questão de vontade. Como se todos pudessem pular no escuro e dar um jeito na queda. Isso cria uma narrativa excludente, que celebra a exceção e invisibiliza a estrutura.

Reconhecer o privilégio não diminui o mérito de quem empreende, só traz honestidade à conversa. É possível ter conquistado muito com esforço e ainda assim ter partido de um ponto mais confortável. É possível ser ousado e, ao mesmo tempo, contar com uma rede de apoio invisível que sustenta esse movimento. Coragem é legítima, mas ela se manifesta de formas muito distintas dependendo da base de onde se parte.

O empreendedorismo precisa, urgentemente, de mais nuance. De menos slogans prontos e mais escuta. De menos glamour e mais política pública. De menos glamourização da escassez e mais acesso real a recursos, conhecimento e capital. Porque coragem sem condições é crueldade disfarçada de incentivo.

Quem tem um sonho deve, sim, buscar realizá-lo. Mas é preciso reconhecer que alguns sonhos custam mais e que nem todos têm o mesmo capital para bancar esse custo. Enquanto não discutirmos isso com seriedade, vamos continuar vendendo coragem onde o que falta, na verdade, é estrutura.

O que o empreendedorismo precisa não é de mais heróis. É de mais equidade. É de menos julgamentos e mais políticas de apoio. É de menos frases feitas e mais espaço real para quem carrega nas costas o peso de empreender sem rede, sem margem, sem garantias. Isso, sim, seria um verdadeiro ato de coragem coletiva.

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